2 de junho de 2007

Cartase: Purificação


Era por uma dessas tardes em que o azul do céu oriental é pálido e saudoso, em que o rumor do vento nas vergas é monótono e cadente, e o quebro da vaga na amurada do navio é queixoso e tétrico.
Das bandas do ocidente o sol se atufava nos mares “como um brigue em chamas...” e daquele vasto incêndio do crepúsculo alastrava-se a cabeça loura das ondas.
Além...os cerros de granito dessa formosa terra de Guanabara, vacilantes, a lutarem com a onda invasora de azul, que descia das alturas...recortavam-se indecisos na penumbra do horizonte.
Longe, inda mais longe...os cimos fantásticos da serra dos Órgãos embebiam-se na distância, sumiam-se, abismavam-se numa espécie de naufrágio celeste.
Só e triste, encostado à borda do navio, eu seguia com os olhos aquele esvaecimento indefinido e minha alma apegava-se à forma vacilante das montanhas derradeiras atalaias dos meus arraiais da mocidade.
É que lá, dessas terras do sul, para onde eu levara o fogo de todos os entusiasmos, o viço de todas as minha ilusões, os meus vinte anos de seiva e de mocidade, as minhas esperanças de glória e de futuro;...é que dessas terras do sul, onde eu penetrara “como o moço Rafael subindo as escadas do Vaticano”;...volvia agora silencioso e alquebrado...trazendo por única ambição a esperança de repouso em minha pátria.
Foi então que, em face dessas duas tristezas a noite que descia dos céus, a solidão que subia do oceano, recordei-me de vós, ó meus amigos!
E tive pena de lembrar que em breve nada restaria do peregrino na terra hospitaleira , onde vagara; nem sequer a lembrança desta alma, que convosco e por vós vivera e sentira, gemera e cantara....
Ó espíritos errantes sobre a terra! Ó velas enfunadas sobre os mares!...Vós bem sabeis quanto sois efêmeros...passageiros que vos absorveis no espaço escuro, ou no escuro esquecimento.
E quando comediantes do infinito vos obumbrais nos bastidores do abismo, o que resta vós?
Uma esteira de espumas...flores perdidas na vasta indiferença do oceano. Um punhado de versos...espumas flutuantes no dorso fero da vida!...
E o que são na verdade estes meus cantos?...
Como espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos da musa este sopro do alto; do coração este pélago da alma.
E como as espumas são, às vezes, a flora sombria da tempestade, eles por vezes rebentaram ao estalar fatídico do látego da desgraça.
E como também o aljofre dourado das espumas reflete as opalas rutilantes do arco-íris, eles por acaso refletiram o prisma fantástico da ventura ou do entusiasmo estes signos brilhantes da aliança de Deus com a juventude!
Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a lágrima saudosa do marujo...possam eles, ó meus amigos! efêmeros filhos de minh'alma levar uma lembrança de mim às vossas plagas!






Prólogo – Espumas Flutuantes
Castro Alves
S. Salvador, fevereiro de 1870

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